Soft flames, deep roots: Zane Lowe & Anneliese special interview

Anneliese está sentada em uma poltrona que parece ter sido trazida de uma casa de vó, salto alto, uma jaqueta, como se o frio não fosse suficiente para justificar. Ela está diferente — não mais crua como em "Out of Reality", nem tão encantada como em "Possum Magic". Há algo de terra molhada nela agora. Uma calma que só se encontra depois de ver o que queima por dentro.

Ela lança "She Sank", o primeiro single de um novo projeto ainda envolto em névoa, mas que parece girar em torno de uma figura feminina que não quer salvar — apenas testemunhar. Ao lado de Zane Lowe, Anneliese reflete sobre os paradoxos da nova feminilidade, sobre o sagrado escondido na rotina, e sobre o que acontece quando se afunda sem querer ser resgatada.

Z: Existe um tipo de silêncio que vem depois do incêndio. Não é vazio — é presença. A presença daquilo que resistiu. Que talvez nem devesse ter resistido. E foi isso que eu senti ao ouvir She Sank. Hoje, eu converso com alguém que faz o silêncio falar. Estou falando de Anneliese. E esse momento... não é só um novo single. É uma ruptura. Um mergulho. Um pequeno colapso sagrado. Anneliese, muito obrigado por estar aqui. Como você chega nesse momento?

A: Eu acho que eu venho chegando há anos. Mas só agora percebi que não preciso chegar a lugar nenhum. Eu posso simplesmente afundar. Posso deixar a coisa me engolir, sem tentar resistir. Por muito tempo, eu achei que fazer música era como erguer um monumento — pra dor, pra beleza, pra inteligência, pra sobrevivência. E eu sabia construir. Mas agora... agora eu acho que estou mais interessada em fazer algo macio. Algo que não exija ser compreendido.

Z: “She Sank”. Você se lembra de onde exatamente ela começou?

A: Começou comigo tentando dormir em paz e percebendo que algo em mim não queria mais repousar. Eu estava me adaptando à vida casada, e havia esse novo silêncio ao meu redor. Só que, ao invés de paz, era como um vazio acolchoado. Escrevi os primeiros versos às 3h da manhã, com o ruído da geladeira ao fundo. Foi menos composição, mais confissão.

Z: Você disse que foi mais confissão do que composição… o que exatamente você estava confessando?

A: (risos) Que eu estava tentando dormir em paz, mas minha mente não recebeu o memorando.
A confissão foi essa: eu estava me enganando, fingindo que tinha alcançado esse estado estável, esse tal “lugar de chegada” que todo mundo fala. Mas na verdade, eu só estava mais silenciosa — o que é bem diferente de estar em paz. Me perguntei: “Será que isso aqui é repouso… ou é entorpecimento?”

Z: E aí nasceu esse verso… “She Sank”.

A: Sim. E ele veio muito seco, quase rude, só: ela afundou. E eu fiquei olhando pra ele como quem encontra uma rachadura no azulejo novo da cozinha, tipo… “ah.” Não era pra ser uma metáfora, é constatação.

Z: Mas tem algo na maneira como você lida com isso na música que parece… sem autopiedade.

A: Porque seria ridículo. Eu sou uma mulher adulta, com acesso à terapia… Eu só não queria mais mentir pra mim mesma dizendo que estava tudo certo, também não queria transformar esse desconforto em espetáculo, queria uma música que fosse só um aviso. Tipo: “olha, tem algo estranho aqui, tá tudo muito bonito, mas tem coisa afundando.”

Z: No comentário que você escreveu pra She Sank, você fala sobre “essa ideia de liberdade jovial que se transforma numa armadilha suave”. O que te fez enxergar essa liberdade assim?

A: A constatação de que eu mesma acreditei nela por tempo demais. Essa ideia da liberdade como algo leve, colorido, pleno — sabe? Aquela imagem meio Pinterest da mulher realizada, de chinelo de palha. Mas pra mim, ela veio num pacote diferente: eu era a mulher que tinha liberdade criativa, autonomia, que podia dizer não. Só que, na prática, era só eu lidando sozinha com tudo. Era uma independência tão absoluta que começou a virar isolamento. E quando isso acontece... até o silêncio começa a parecer estofado demais, confortável demais. É como se algo estivesse amortecendo sua queda, mas ainda assim: você está caindo.

Z: Em outro trecho você escreve: “as árvores viram testemunhas mudas da minha incerteza”. Isso é tão visual. Você costuma associar esses estados internos com paisagens?

A: Muito. Acho que é porque a natureza não está interessada em te consolar. Ela só é. Quando eu olho uma árvore, uma rocha, ouço o som do vento… é como se eu encontrasse algo que testemunha sem julgamento… A árvore não quer saber se eu sou forte, se o álbum tá indo bem, se eu estou casada. Ela só... tá lá, e naquele dia, tudo estava imóvel, menos minha cabeça, então escrevi isso pra lembrar que o mundo não tá esperando uma resposta minha — só eu mesmo.


Quando o mito quebra e a verdade grita:

“parei de performar profundidade”


Z: Você sente que “She Sank” rompe com algum mito sobre o que é ser mulher?


A: Com vários, mas especialmente o da mulher invencível, Aquela que sempre levanta, sempre reage, sempre tem um plano. Eu queria cantar sobre a mulher que não tem mais plano: ela senta, chora, olha pra uma santa de gesso rachado, e diz: “eu não sei mais”. É nesse espaço, entre o colapso e o cuidado, que eu me sinto mais viva hoje.

Z: Você acha que as pessoas esperam que você traga sempre algo grandioso? Que isso te pressiona?

A: (risos) Total. Mas acho que isso vem mais de mim do que dos outros. Durante muito tempo, eu acreditei que, se eu fosse lançar algo, precisava justificar o lançamento com uma tese: A música tinha que ter múltiplas camadas, uma estética impecável, referências que só três pessoas no planeta entenderiam. Porque, se não fosse assim, será que valia mesmo? Hoje, eu não penso mais nisso, ou penso, mas ligo menos.She Sank é sobre isso também: sobre parar de fazer coisas pra impressionar e começar a fazer coisas pra se escutar. E, sinceramente, às vezes o mais honesto que eu consigo dizer é: “não tenho certeza se estou bem, tô péssima pra caralho, acho que só parei de performar profundidade”.

Z: Essa frase — “parei de performar profundidade”. O que exatamente você quis dizer com isso?

A: É que por um tempo, eu comecei a me perceber como uma caricatura de artista. Do tipo que só compõe no caos, só grava com a luz apagada, só fala em parábolas. Eu mesma me coloquei nesse papel. Mas tinha um momento em que já não era tão real — era uma simulação de profundidade. E performar profundidade cansa. Porque você começa a pensar mais no impacto do que na verdade, e isso é péssimo pra qualquer coisa viva.

Z: E agora?

A: Agora eu só estou tentando ser… despretensiosamente densa.
Se for leve, ótimo. Se for complicado, tudo bem. Mas que venha de um lugar verdadeiro — nem que esse lugar seja o som da geladeira às três da manhã enquanto você repensa toda a sua vida.

Z: Então... todos os seus trabalhos foram assim? Com essa calma, essa consciência?

A: (risos) Claro que não. Quer que eu liste?

Z: Sim, por favor.

A: Vamos lá. Tipo, o Visceral. Eu amo ele, tá? Mas ele veio logo depois do Out of Reality, que tinha dado super certo, aí o Visceral foi, basicamente, uma tentativa desesperada interior minha de replicar aquele sentimento. Só que não é assim que as coisas funcionam. Aí tem o Turtango. Meu Deus... o Turtango. Um álbum inteiro com sonoridade de tango eletrônico. Oi? (risos) Você percebe que são essas coisas… essas tentativas desesperadas de parecer inventiva. E no fim, o reflexo é justamente esse: a desimportância que essas obras passam a ter com o tempo. Você embarca em loucuras inimagináveis tentando se manter num patamar que, sinceramente, você mesmo criou pra se torturar. É ridículo. E, pior, você acha que está sendo genial. Mas na real, está só tentando não afundar na sensação de que talvez você não tenha mais nada a dizer, ou tirando o valor daquilo que você quer falar de verdade, de maneira honesta.

Z: Tem uma faixa que você me mostrou mais cedo, do novo album e eu não quero dar spoiler, mas tem um verso ali sobre plástico derretido e uma pergunta sussurrada como se fosse pra uma avó morta. Aquilo ficou na minha cabeça. Essas imagens — elas vêm de onde? São delírios intencionais ou memórias disfarçadas?

A: Acho que são memórias que resolveram vestir uma máscara de delírio. Eu escrevo muito nesse estado meio liminar… como se algo em mim estivesse cochichando e eu só transcrevesse. Às vezes sou eu, outras vezes é uma versão minha que eu deixei pra trás. Esse verso especificamente surgiu numa noite em que eu dormi num lugar que me conhecia melhor do que eu gostaria.

Z: O mais desconcertante, pra mim, é a tranquilidade dos versos. Você fala de quartos, utensílios, de santas que suam… mas sempre com essa paz inquietante. Isso é calculado?

A: É, e não é. Eu acho que o silêncio, quando é vivido de verdade, pode ser mais barulhento que o grito. Me interessa muito observar como a mulher carrega o medo — ou a raiva — em gestos mínimos, em silêncio cerimonial, então sim, eu falo sobre uma tomada que solta faísca e uma imagem da Virgem Maria que não se mexe… mas tudo isso está vendo. Tudo está testemunhando. E nesse tipo de silêncio, a santidade vira tensão.

Z: Esse disco novo me soa como uma tentativa de encontrar um novo tipo de voz. Um equilíbrio entre a poesia etérea de Possum Magic e a visceralidade mais pé no chão de Anneliese Out of Reality. Tô viajando?

A: Nada, você acertou em cheio. Eu tô mesmo entre esses dois polos. E olha… eu amo o Possum Magic. É um álbum que eu ainda revisito. Eu coloquei muito do meu coração ali. É um universo lindo, todo costurado em suavidade, quase mágico mesmo. Outro dia, sem querer, escutei a faixa Family de novo — e eu fiquei meio boba, pensei: “Como é que eu consegui escrever isso?” Foi como se alguém mais sábio tivesse escrito através de mim. Mas agora eu tô com vontade de fricção. De deixar o poema arranhar o azulejo. Esse novo trabalho tenta segurar os dois mundos ao mesmo tempo: o etéreo e o concreto. O candelabro e o azulejo trincado.

“Eu nunca me senti exatamente uma compositora de verdade.”


Z: Você já se reconhece como compositora? Quero dizer… com tudo o que você constrói nas letras, nas camadas… você se vê nesse lugar?

A: Acho que… não. Ou pelo menos, não de forma tranquila. Eu nunca me senti exatamente uma compositora de verdade. Tem dias em que eu me acho visceral demais, outros em que me acho só performática — meio falsa, sabe? Como se eu tivesse tentando parecer alguém que escreve bem, mas sem saber de verdade o que estou fazendo. Tem muita gente que escreve como quem respira, que tem estrutura, método. Eu não tenho isso, eu tenho momento e do nada vem tudo de uma vez, no mas eu tenho a Hurrance.

Z: Hurrance Evans?

A: Sim. Ela é a primeira pessoa pra quem eu mando qualquer coisa que escrevo. Não tem uma música minha que tenha saído sem passar pelos ouvidos dela. Nossa amizade parece que existe desde sempre — eu nem sei dizer quando começou. É uma daquelas pessoas que só estavam lá, quando você olhou de novo. Ela me ajuda a não surtar (risos) às vezes eu escrevo um verso e penso “isso é genial” e cinco minutos depois penso “isso é a pior coisa já escrita por um ser humano”. Aí eu mando pra ela, e ela me diz se tô viajando. Quase sempre eu tô (risos), mas às vezes não. E ela sempre sabe qual é qual.

Z: Mas é curioso te ouvir falar assim, porque de fora tudo parece tão intencional, tão construído. Você tem um senso de linguagem muito específico. Parece quase ritualístico.

A: É, mas eu fico meio desconfiada quando tudo parece ritualístico demais. Hoje em dia tem muita gente que, sem perceber, entra numa performance de “artisticidade”. Eu mesma já fui assim — como se cada verso tivesse que ser justificado com um tratado estético. E o pior: às vezes você tenta enfeitar pra parecer que tem mais ali do que realmente tem. Um jeito de comprar profundidade. Eu fiz isso. Muito.

Z: Em que momento isso começou a mudar?

A: No Out of Reality. Eu lembro exatamente do dia. Tava escrevendo umas músicas e tentando colocar coisas “elevadas”, palavras bonitas, imagens difíceis… só pra ver se assim a música ganhava valor. E aí, conversando com a Hurrance, eu falei: “Eu não aguento mais tentar fazer isso dar certo. Já já faço tudo de canetinha mesmo.” E foi. Não foi uma escolha estética — foi uma desistência. Mas das boas. Eu desisti de tentar fazer sentido, o álbum saiu assim: Espontâneo, suado, livre.

Z: Mas essa liberdade também tem um custo, né? Digo, não é o tipo de escolha que agrada um departamento de marketing.

A: (Ri) Com certeza. Mas é justamente por isso que eu administro minha carreira assim: se eu tiver um álbum inteiro pronto e não quiser lançar, eu simplesmente não lanço. Se amanhã eu quiser subir uma música aleatória no streaming, eu subo. Nem tudo precisa ter um grande propósito. E, honestamente, eu admiro muito quem faz isso também.

Z: Você acha que essa pressão pelo “grande propósito” vem da indústria?

A: Parte vem, sim. Mas parte vem da gente mesmo. Eu vejo artistas tentando justificar uma música de amor boba com uma tese escandinava ancestral. E assim: tá tudo bem a música ser só uma música de amor boba, ainda bem que ela é isso, não tem nada mais necessário hoje do que alguém dizer algo simples com verdade. Pra mim, o problema não é o que é simples — é o que é simples fingindo ser complexo. Eu tenho horror a essas decisões meramente artificiais. Acho que a beleza tá em permitir que uma música exista sem precisar se disfarçar.

“esse EP é um comentário sobre essa necessidade desesperada de parecer valioso”


Z: Ok… esse novo trabalho que você lança essa noite — Kill Me in Character — onde ele se encaixa nisso tudo que você tem vivido, artisticamente?

A: Ele não se encaixa, essa é meio que a graça, ele escapa, é um disco que escorrega das minhas mãos e eu deixo, pela primeira vez eu deixo, porque eu passei tempo demais tentando lapidar dor, transformar colapso em estética, fazer da tristeza uma espécie de templo bonito, um altar com iluminação lateral e metáforas engenhosas, eu transformava a queda em arquitetura, uma escultura de veludo que me engolia com carinho, e isso me dava uma falsa sensação de controle, de elegância, mas no fundo, eu tava sufocando, entendeu?

Z: Então esse novo disco é o quê, uma fuga?

A: Não é uma fuga, é uma espécie de desmanche, uma descompressão daquilo que tava armado demais, sabe quando você tira uma fantasia mas a pele ainda tá marcada? então, é isso, só que eu não quis só tirar a roupa, eu quis cuspir os botões, arrancar os cílios com raiva, cair no palco de propósito, sair de cena berrando palavras soltas, e tudo isso com os mesmos artefatos que a gente vê por aí nas obras que se levam a sério demais, sabe, maquiagem barroca, frases truncadas, uma aura etérea importada de algum catálogo conceitual, mas aqui tudo isso aparece como deboche, porque no fundo esse EP é um comentário sobre essa necessidade desesperada de parecer valioso, como se empilhar símbolos desconexos automaticamente criasse profundidade, como se quanto mais difícil de entender, mais digno fosse o trabalho, e eu entrei nesse jogo por muito tempo, eu fazia parte desse clube, mas hoje eu olho pra esse exagero todo e rio, então esse disco é isso, uma sátira interna, um palhaço existencial que me veste enquanto eu desisto de me levar a sério, é a cena que nunca me deixaram encenar, a cena onde eu não sou bonita, nem genial, nem coerente, mas ainda assim sou eu.

Z: E por que agora?

A: Porque antes eu tava presa num esforço muito grande de ser compreendida, de parecer delicada, inteligente, sensível, alguém que sofria bonito, sabe, alguém que fazia arte decente, e um dia eu percebi que esse esforço de fazer sentido tava me matando, eu tava traduzindo demais, arredondando as arestas pra ficar palatável, e aí nasceu o Kill Me in Character, dessa vontade de morrer em cena mas do meu jeito, com as cortinas caindo, o público olhando confuso, eu maquiada como uma santa barroca de plástico, segurando um microfone quebrado e gritando palavras que ninguém entende e que nem eu sei se fazem sentido, e talvez esse seja o ponto, é a minha forma de dizer eu existo mesmo sem ser decifrada, ou melhor, eu existo sobretudo quando não sou decifrada.

Z: E isso te libertou?

A: Libertou, me libertou de uma ideia estéril do que significa ser artista, de uma ideia elegante do que é ser sofisticada, porque eu tava toda montada pra parecer autêntica e ninguém via, nem eu via, eu tinha virado uma performance ambulante de profundidade, e esse EP é o que sobra quando você para de se observar o tempo todo, quando você deixa a coisa sair como ela quiser, torta, besta, cortante, ridícula, sublime, tanto faz, ela é minha.


Z: Você fala bastante sobre essa ideia de “permitir que a música exista” — isso me lembra muito a relação que você cria entre o doméstico e o místico nas letras, tem algo de sagrado até nas cenas mais pequenas, uma toalha molhada, um travesseiro, uma pia com cheiro de vinagre, isso é proposital?

A: Sim, mas não é uma tentativa de engrandecer o cotidiano, é o contrário, eu só comecei a prestar atenção no quanto essas pequenas cenas já são grandes por si só, o mundo interior da mulher, principalmente, foi construído dentro de espaços contidos, cozinha, banheiro, quarto, e esses espaços criam uma espécie de mitologia íntima, às vezes dobrar uma roupa pode ser um ritual de exaustão, olhar pro teto pode ser uma oração, é dentro dessas repetições que a espiritualidade feminina — a minha pelo menos — encontra corpo, e foi ali, nesse chão sagrado que não se exibe, que as figuras do EP começaram a aparecer

Z: Figuras como… você sabe quem?

A: (rindo) ela mesma, eu nem lembro quando esse nome apareceu, mas foi como se ela já estivesse me observando debaixo da terra, Ela pra mim é o símbolo dessa maternidade silenciosa que não salva mas vê, ela é o oposto da virgem gótica, suspensa num vitral limpo demais, ela tá enterrada na lama, com as mãos sujas, mas os olhos sabem tudo, ela me apareceu num momento em que eu sentia que tudo o que era feminino em mim tava sendo esmagado pelo que esperavam que eu fosse, e ao mesmo tempo eu me via querendo me render a isso, achando beleza nisso também, e essa contradição virou o coração do disco

Z: Você já descreveu esse disco como “um álbum sobre o que sobra”, o que exatamente sobra?

A: A sobra é tudo aquilo que continua na gente depois que a performance termina, depois que o corpo já se moldou pra agradar, depois que a casa tá limpa, depois que o outro dorme, é o pó debaixo do tapete, é o pensamento que não foi dito, é aquela sensação meio fantasma de “eu fiz tudo certo, então por que ainda sinto que algo morreu?”, e isso ficou em mim como uma espécie de verdade crua que ninguém queria ouvir

Z: Caramba

A: É… eu queria escrever sobre essa sobra com respeito, sem tentar limpá-la, sem tentar dar um nome nobre, sem estetizar tudo de novo, e mesmo assim, eu sei que tem beleza ali, uma beleza torta, talvez queimada, talvez idiota, mas ainda assim minha, e se por acaso ela parecer valiosa, talvez seja porque a gente aprendeu a achar que tudo que dói precisa parecer bonito pra ter importância, mas esse EP novo inteiro é justamente um comentário sobre essa necessidade desesperada de parecer valioso, como se empilhar símbolos, latas de verniz conceitual e palavras indecifráveis fosse o que transforma dor em arte, e pra mim, pelo menos agora, isso já não basta. E estou ansiosa pra mostrar como isso refletiu no meu novo álbum.